Por Matheus Pichonelli
Revista Carta Capital 
Não faz nem uma semana, São Paulo foi palco de um debate acirrado sobre o  trabalho de voluntários que, durante a noite, distribuem sopas aos  moradores de rua na maior cidade do País. A prefeitura ensaiou censurar o  trabalho, movimentos sociais reagiram e o prefeito Gilberto Kassab,  ciente da má repercussão do caso, proibiu a proibição. No calor da  discussão, muitos leitores esclarecidos e bem agasalhados aproveitaram o  momento para colocar para fora uma bronca ancestral. Muitos se  queixavam da presença dos mendigos que, como pestes transmissoras de  doenças, se espalhavam pelo caminho de casa.

“Em vez de dar o peixe é preciso ensinar a pescar”, discursaram os  defensores do bom senso – que não por acaso têm o monopólio das varas,  das redes, das iscas e dos barcos a motor. Um deles foi além: escreveu  aos leitores deste site que a proibição da distribuição dos alimentos  seria saudável para a economia paulistana. E explicou: com a ajuda dos  voluntários, os legumes desapareciam das prateleiras, o que elevava os  preços, gerava inflação e prejudicava o bolso de quem trabalhava e tinha  condições de comprá-los.
Sem querer, o sujeito dava um retrato bem acabado do espírito  utilitarista moderno, do qual os asseclas veem signos sem significantes  (ou hieróglifos de uma linguagem estranha) toda vez que se deparam com  expressões como “solidariedade” e “gratuidade”.
Parece ironia, mas a mesma cidade que ontem se negava a dar um prato  de sopa aos seus moradores de rua assistiria, pela tevê, a história de  Rejaniel de Jesus Silva Santos e Sandra Regina Domingues, habitantes de  um viaduto do Tatuapé que encontraram uma bolsa com 20 mil reais e  decidiram chamar a polícia. (O leitor preocupado com a inflação poderia  se exasperar sabendo que os legumes seguirão em falta nas prateleiras,  agora com um agravante: as notas de dinheiro seriam novamente injetadas  na economia, cutucando com vara curta o fantasma da inflação).
Se tem uma história que os leitores adoram, e os jornais não perdem a  chance de destacar, é sobre pessoas pobres que, diante da chance de  enriquecer, devolvem o dinheiro que não lhes pertence. Fica a impressão  de que as coisas ainda têm jeito – e de alguma forma devem ter. É como  um respiro no noticiário mundo-cão.
A história do casal sem-teto de São Paulo parecia inspirada em Onde os Fracos Não Têm Vez,  o filme dos irmãos Coen baseado no livro de Cormac Mccarthy em que o  personagem de Josh Brolin encontra uma mala de dinheiro e passa o resto  da vida penando por conta da sorte (o dinheiro pertencia a um grupo  criminoso pouco disposto a fazer caridade). Pelo menos no filme,  vencedor do Oscar de 2008, o destino girou a roda da fortuna em direção  contrária, e o apego à própria sorte provocaria estragos imateriais: o  personagem ganha o dinheiro mas perde a paz, passa a ser perseguido por  um psicopata e coloca em perigo a segurança da própria família. No caso  de Rejaniel, havia principalmente duas preocupações admitidas nas  inúmeras entrevistas dadas ao longo do dia: o medo de criar problemas  com a polícia (que poderia desconfiar se o visse com tanto dinheiro) e a  vontade de despertar o orgulho dos pais.
De toda forma, o limiar entre a oportunidade escancarada e uma  possível consequência desastrosa da sorte parecia tênue. Basta lembrar a  ameaça sobre os sem-teto feita pelos criminosos que haviam assaltado um  restaurante em São Paulo e esconderam a mala possivelmente para  despistar a polícia. (Impossível não imaginá-los com a cara do Javier  Bardem).
De toda forma, o desprendimento dos dois moradores de rua provoca um  nó na cabeça de quem, na semana passada, já se preocupava com o preço  dos legumes ao consumidor final. É como rasgar nota de cem: não adianta  buscar sentido na atitude. Mesmo assim, dá para ao menos imaginar que os  moradores de rua já passaram por situações-limite tais de desapego que  20 mil reais a mais, ou a menos, já não fazem diferença. 
É como se  houvesse uma ética própria das ruas, que oprimem mas também abrigam  um desprendimento libertário impossível de ser encontrado em  instituições como família, escola, trabalho e até albergues públicos  (todos com lógicas e valores próprios, regras e horários de  funcionamento). Entender essa lógica com o olhar de quem não foi ao  limite do desprendimento é exercício inútil.
Em 2005, quando torcedores provocaram atos de vandalismo depois da  conquista da Libertadores pelo São Paulo, vi uma banca de revistas ser  destruída em segundos na base dos pontapés. A banca ganhou o formato de  um número “8”, e logo foi invadida. De onde eu estava, via as pessoas  entrando na banca, parte delas com camisas oficiais de seu time, e  levando o que cabia nas mãos: revistas, jornais, maços de cigarros,  brindes. No mesmo instante, um catador de material reciclável, que  passava pelo mesmo local sempre naquele horário, atravessou a bagunça  com um olhar de estranhamento. 
Não só não aproveitou a chance de  engordar o bolso surrado como balançou a cabeça em reprimenda aos  espertalhões – que levavam num braço o que ele levaria uma noite para  recolher em forma de latinhas de cerveja ou refrigerantes.
Num mundo tão competitivo e de oportunidades tão escassas, a rejeição  da própria sorte parece algo difícil de se entender. “Mas a vida real  não é entendível”, escreveu certa vez Guimarães Rosa. Como esta, a  história do casal que recusou a fortuna mostra que, nas ruas (ou no  sertão, ou no deserto dos irmãos Coen), a sobrevivência não é alcançada  pelas portas do oportunismo. As buscas (e recompensas) são sempre outras  – e não parecem perceptíveis a olhos nus.